Violência contextual nos jogos
- Coral Gelmo
- 27 de out. de 2024
- 10 min de leitura

Ariel é uma pessoa normal e, assim como todas as suas amizades, come macarrão em todas as refeições! Espagueti, talhararim, penne, cabelo de anjo, parafuso, gravatinha; bolonhesa, sugo, carbonara, bechamel, pesto. Uma fininade de combinações entre massas e molhos propiciam refeições variadas e diversas para Ariel.
O que Ariel não sabe é que, apesar de macarrão ser muito gostoso, existem milhares de outros pratos tão deliciosos quanto. Que tal se você e eu déssemos essa notícia para nossa mais recente amizade?
- Hey, Ariel. Você sabia que, além do seu amado macarrão, também pode comer coisas como pudim, churrasco, hamburguer, bolo de aniversário, lasanha e arroz a grega?
- FODA-SE, eu gosto de macarrão! Macarrão na veia e o resto na cadeia, OTÁRIOS!
É, parece que Ariel não é lá muito fã de novas sugestões...
Um leitor que não seja fiscal de prato alheio deve estar se perguntado "Uai, mas qual seria o problema de Ariel gostar somente da famosa pasta italiana?" Nenhum! O problema é quando o supermercado passa a achar que a maioria das pessoas tem o mesmo gosto que Ariel.
E não sei se você sabia, mas, Ariel é uma pessoa normal e, assim como todas as suas amizades, joga games de combate em todas as suas jogatinas! Revorves, metralhadoras, escopetas, espadas, machados, bolas de fogo, raios lasers; Guerra moderna, guerras antigas, pós-apocalipse, zumbis, alienígenas, fantasia medieval. Uma fininade de combinações entre armas e cenários propiciam jogatinas variadas e diversas para Ariel...
A dita Violência Contextual
Jogos de videogame são violentos, predominantemente violentos. Os verbos mais usados ao se descrever uma jogatina é “matar” e “morrer.”
Antes de você começar a espumar de raiva já digo: Não sou uma pastora/deputada tentando banir Carmagedon ou uma juíza proibindo Bully.
Se antes de me responder de forma grosseira você puder fazer a gentileza de reler os parágrafos anteriores com atenção, eu agradeço! Já adianto que sequer encontrará juízo de valor no que foi dito até agora.
Se engana quem acha que por “violência” eu estou falando somente de coisas como Mortal Kombat ou Manhunt. Eu to falando de Super Mario! Um jogo onde você esmaga tartarugas sencientes até a morte pulando na cabeça delas. Eu estou falando da violência CONTEXTUAL.
Violência nos jogos, na maioria das vezes, não é uma mecânica de gameplay, mas sim uma roupagem narrativa! Pular nos “inimigos” para elimina-los é uma mecânica de muitos jogos plataforma 2D, mas isso per si não se traduz em “violência.” Esse uso de violência como “roupagem” eu vou chamar de Violência Contextual.
Em Mario e em Sonic você anula os inimigos ao pular em suas cabeças, tal qual o lutador de MMA e podcaster freelancer Wanderlei Silva. Mas, se em Mario você mata as tartaruguinhas, em Sonic você destrói robôs que aprisionam animais. A mesma mecânica, mas com justificativas contextuais diferentes.
Em um cenário você mata tartarugas e em outro você salva tartarugas. Pular em cima de “inimigos” pode ser uma ação do Bolsonaro ou do Greenpeace, aparentemente. A mesma ação, contextos diferentes.
Megaman de curar gente

A primeira vez que percebi a violência dos jogos como algo não intrínseco a gameplay foi no 1 º período da faculdade de game design. O trabalho do semestre era fazer um protótipo de um jogo sobre mundo pós-apocaliptico. Entre vários temas sorteados, o do meu grupo foi: apocalipse biológico... demorou exatos 03 segundos para decidirmos fazer um jogo de zumbis.
Como era pra ser algo simples, meu grupo escolheu fazer algo parecido com Megaman, só que com zumbis. Uma protagonista andando numa fase 2D matando zumbis com uma arma! No fim da fase teria um zumbi chefe. Simples, fácil e cativante! O sentimento de geral era de que ganharíamos milhões com nosso jogo; o mais pessimista achava que seria apenas um 10 mesmo.
Após todos terem escrito uma ideia do que seriam seus jogos o coordenador do curso revelou uma regra secreta pra este trabalho: Os jogos não poderiam ter violência e deveriam ser educativos. Um balde de água fria na cabeça de geral.
No meu grupo a depressão reinou:
- Jogo educativo e sem violência? Certeza que só vai ter jogo chato - exclamou um
- Vai parecer jogo feito pelo ministério da saúde – reclamou outro
Enquanto ouvia as lamentações de meus desiludidos colegas os Deuses dos jogos sopraram no meu ouvido uma ideia tão genial que se eu fosse grega teria saído berrando: EUREKA EUREKA.
Nós ainda podíamos fazer um Megaman de zumbis! A mecânica central é atirar projéteis em um “inimigo” até ele não ser mais uma ameaça, não tem nada de violento nisso!
No jogo do autômato azul você atira laser e destrói robôs, no nosso jogo você atiraria balas e mataria zumbis... mas e se você atirasse a cura, ao invés da morte?
Uma arma que atira um antidoto que faz o zumbi voltar a ser gente! Pronto, cabô a violência!
E foi assim que fizemos nosso megaman de curar zumbi!
A parte da educação ficou a cargo de npcs que explicavam o que são superbactérias. (Sim, zumbis bacterianos!) Não ganhamos milhões. Na verdade, não ganhamos nem nota 10... mas foi um Megaman de zumbi!
Essa ideia, porém, veio com uma maldição escondida, um preço ALTÍSSIMO a ser pago... desde então eu vejo violência contextual nos jogos a todo tempo e por toda parte.
No próprio Megaman, se a narrativa dissesse, por exemplo, que o maligno Doutor Willy controla robôs de bom coração através de um vírus; o megaman como o grande herói que é não os mataria ou destruiria! Talvez ele atirasse um “antivírus” que purificaria os pobres robôs possuídos pelas mãos imundas do cientista louco!
A parte essa historinha que pouco importa para a maioria, o jogo continuaria 100% igual! (acredite se quiser existem algumas pessoas que se importam com a lore de megaman, mas até ai... quem me garante que uma lore sem violência não seria ainda melhor, hein hein?)
Bote os miolos pra funcionar, colega leitor! Tenho certeza que você consegue tirar a violência de vários jogos e ainda assim deixá-los igual, é só pensar um tiquinho fora da caixa. Porque tantos jogos são sobre MATAR/DESTRUIR ao invés de ajudar/curar/salvar se isso nada mudaria na gameplay e poderia até mesmo deixar histórias que se pretendem a ser realistas muito mais críveis e interessantes?
Enquanto jogava o recém lançado souls de siri, vulgarmente conhecido como Another’s Crab Treasure, percebi o quão desnecessária é a violência contextual neste jogo.
Nesta alegre desventura no oceano seus inimigos são criaturas marinhas que estão “possuídas” pela poluição, o que faz com que fiquem violentas e te ataquem. Sua resposta para lidar com isso? Matar todos com um garfo enferrujado.
Imagine por um segundo, como seria Another’s Crab Treasure se, ao invés de um talher pontiagudo, tivéssemos uma escova de dente! A cada chapuletada nos inimigos não estaríamos ceifando sua vida, mas sim “limpando” a poluição que controla sua mente.
Alias, graças ao mais novo lançamento no meu querido Gamepass você não precisa imaginar isso, você pode apenas jogar Creatures of Ava! Neste belíssimo joguinho você empunha uma espécie de bastão mágico laser para enfrentar criaturas que estão ensandecidamentes agressivas devido a uma doença. Seus tiros a laser, porém, ao invés de mata-las, as cura da ziquizira do mal e torna-as suas amigas e ferramentas para lidar com outros desafios do jogo.

Então você quer o fim da violência nos joguinhos?
Não me entenda mal, eu não estou condenando moralmente a violencia contextual ou mesmo a explícita; tampouco estou dizendo que ela não pode ser divertida
Eu pessoalmente acredito que jogos como Doom ou Hotline Miami fazem usos conscientes e planejados da violência contextual de maneira funcional e divertida.
Minha questão é com jogos onde a violência contextual está apenas como status quo, como a normalidade de um jogo de video game.
“Eu tenho inimigos, eu os mato!” Que mundo cão da disgraça onde tudo se resolve no supapo é esse?
A uniformização do pensar não é algo que contribui muito pra qualidade geral de uma mídia. Em outras palavras: Se tudo for muito igual fica uma bosta.
A diversidade e variedade de pensamentos na produção artística de jogos indies é o que nos permitiu ver tantas ideias completamente novas e revolucionárias na indústria nos últimos 10 anos.
Minha problemática com a violência contextual é exatamente sobre quantas coisas diferentes estamos perdendo. Quantas boas histórias são descartadas porque “não tem violência”. Quantas boas mecânicas não foram mais exploradas porque “não tem violência”. Tudo em casos onde a dita “violência” não era mais do que uma roupagem.
Violência demais deixa as coisas bobas

A maioria das histórias contada nos video-games tem uma boa dose de idealização heroica. Não que eu pessoalmente goste disso, mas é um fato. Muitas vezes nossas protagonistas são desajustadas, com uma balança moral não tão alinhada a extrema benevolência, mas ainda assim são heróicas de alguma forma.
E pra você, colega leitor, o que é mais heroico: Ceifar a vida de um inimigo ou salvar a vida de um aliado?
Arthur Morgan não é bem um herói, mas definitivamente não é um vilão. É um homem comum vivendo numa sociedade extremamente violenta; é fruto de seu tempo e, portanto, suas ações com os outros podem ser tão brutais quanto tudo aquilo que ele já viveu.
Essa foi a percepção que tive do protagonista de Red Dead Redemption 2 nas primeiras horas de jogatina. Até que cheguei numa missão onde, por ordem da gerência, era obrigatório salvar da forca um assassino e estuprador nojento chamado Micah.
Interessante dizer que, até então, o que me foi apresentado é que Arthur se quer gosta de Micah e, se não fosse o líder de sua quadrilha, o fanfarrão Dutch, o deixaria pra morrer. Ainda assim, ele monta em sua eguinha pocotó e parte para ajudar a vida desse degenerado.
Para minha surpresa, a missão não era sobre sorrateiramente tirar o desgraçado da cadeia, mas sim tira-lo de lá matando DEZENAS de pessoas pelo caminho somente porque o vagabundo não quer sair de lá sem suas armas de estimação. Enquanto dizimam a pacata cidade de Stramberry, Micah ri se divertindo e Arthur demonstra todo seu incômodo em estar fazendo isso.
Bem, Seu Arthur, incomodado ou não, você acabou de matar dezenas de pessoas inocentes pra salvar a vida de alguém que só faz peso na terra. A partir dai comecei a me questionar da minha noção prévia de que Arthur “...definitivamente não é um vilão.”
Me responda, caro leitor: Se seu amado pai lhe pedisse para invadir uma cidade e matar dezenas de pessoas só para salvar a pele do amigo nojento dele... você faria?
A lealdade a seu pai seria maior do que sua índole pessoal de não ser um assassino em massa?
Até então eu gostava do Arthur, depois disso passei a ser indiferente. A história me perdeu exatamente aí. Morgan não tem as falas bizarramente psicopatas de Micah ou Trevor, de GTA 5, mas suas atitudes são as mesmas: a de um assassino em massa, que não tem remorso ou dificuldade em matar dezenas de inocentes.
Quando vi o fatídico fim de do jogo, não senti pena nem tristeza na conclusão da jornada do pistoleiro, apenas indiferença. Eu tenho empatia com uma pessoa que é violenta devido ao meio em que vive, mas não tenho empatia com assassinos em massa
.
O pior de tudo é ver que, ao decorrer da narrativa, Arthur constantemente demostra sim saber o valor da vida humana, nunca se mostrando um psicopata sanguinário. E ainda dizem que Red Dead Redemption 2 é realista...
De que adianta as paisagens lindas, os corpos que apodrecem e as bolas equinas sensíveis a temperatura se o personagem principal é raso como poça, traindo sua personalidade a todo momento em prol de proporcionar ao jogador tiroteios que nem são tão divertidos assim?
Red Dead Redemption 2 trai seu caráter de simulação de faroeste quando repetidas vezes coloca sua personagem principal fazendo coisas que fogem completamente ao cenário proposto.
Isso porque estamos falando apenas da narrativa “canon”, porque enquanto a história não acontece seu Arthur pode literalmente entrar em uma cidade e matar todos os homens, mulheres, crianças e animais que ali habitam.
E sim, podemos gostar de personagens que são vilões assassinos por acharmos interessantes suas histórias, backgrounds e desenvolvimentos. O problema é que o Arthur das cutscenes não é essa pessoa, apenas o Arthur do tirinho é.
Eu entendo quem diz que abstrai a parte de tirinho em massa e absorve somente o Arthur das cutscenes e diálogos. Mas essa abstrações só são necessárias pelo uso ineficiente e exacerbado da violência e somente estão presentes na mídia vídeo game.
É como se você como jogador tivesse que fazer uma colcha de retalhos com as partes da narrativa que importam e descartar o resto, caso contrário a história simplesmente não funciona.
Jogos de Ação/aventura sem violência
Foi pensando nisso tudo que comecei uma jornada hercúlea para tentar encontrar jogos de aventura/ação sem violência, ou que ao menos a violência não fosse o contexto central das ações. Tal qual seu primo nóia que te oferece drogas no natal, vou agora partilhar algumas dessas joias com você:

The Firemen – Super Nintendo, 1995
Em The Firemen você atira e tem um machado. Atira água e usa o machado para abrir caminho. Como o próprio nome já denuncia, este belo joguinho é sobre nossos amigos militares favoritos: Os Bombeiros. Os inimigos? Chamas, labaretas e chamuscas! A mecânica de atirar água com a mangueira é similar a várias outros jogos top down de tirinho, mas com um pequeno twist: ATIRAR passa a ser sobre salvar pessoas!

Toejam and Earl – Mega Drive, 1994
Um roguelite dungeon crawler onde sua arma mais poderosa será um estilingue de tomates! É uma arma, sim, porém nem de longe tão poderoso quanto a BAZUCA de tomates que seus inimigos carregam. Em um tiroteio a pomodoro, quem você acha que sai ganhando: um estilingue ou uma bazuca?
Apesar de ter sim armas, elas não são os recursos mais usados ou desejados de sua jogatina. Em Toejam and Earl você trocará a dominância do verbo “matar” pelo verbo “fugir.”
Se apenas tomates são suas armas, as ferramentas para fuga são muito mais diversas e eficazes: Patins a jato, boia de patinho, tenis pula-pula, tenis de corrida, roseiras que atrapalham os inimigos em seu encalço e até mesmo um rádio boombox tocando uma batida funk envolvente o suficiente para distrair quem te persegue para que você fuja de fininho.

Dishonored 2 – Xbox One, PS4 e PC, 2016
Estripar, explodir, esfaquear são opções viáveis para lidar com seus desafios neste immersive sim, mas esgueirar, incapacitar e distrair são ainda mais eficazes e, impressionantemente, incentivadas pelo jogo.
Não somente existem múltiplas ferramentas, mecânicas e possibilidade para soluções não letais, como o uso constante da letalidade afeta o desdobramento da narrativa e o próprio gameplay em si.
Conclusão
O mais interessante é parar para pensar que nenhum dos exemplos acima inventou um gênero novo ao retirar a violência contextual de suas mecânicas. Afinal, Twin-stick shooter, dungeon crawler e combate em 1º pessoa não são coisas incomuns na indústria.
Eu não quero o fim do macarrão. Eu gosto muito de macarrão, uma bolonhesa com uma coquinha gelada é algo único no mundo. Só não quero comer a mesma coisa em todas as refeições. No fim, diria que comer outras coisas me faz até valorizar mais nosso querido macarrãozinho.
Mas, mais do que isso, o que me assombra é pensar em todos os pratos que não foram inventados porque Ariel e seus amigos só comem macarrão.
Por mais de 4 décadas o verbo “matar” foi destrinchado no video game em múltiplas mecânicas e abordagens narrativas diferentes. Quantas mecânicas e histórias incríveis não estamos perdendo por não explorar verbos como “fugir, enganar, descobrir, conversar, seduzir, curar, cuidar, entender e convencer”?
Eu gosto de jogos de espadinha, tirinho e soquinho, mas não posso deixar de notar o grande elefante invisível na sala que é a infinidade de possibilidades perdidas devido a predominância dos jogos de combate na mídia videogame.
Referências:
Half-Real: Videogames Entre Regras Reais e Mundos Ficcionais - Jesper Juul
What Is the Games Industry Missing? - Pixel a Day
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